quarta-feira, 5 de maio de 2010

Excerto - "Quem Me Dera Que Estivesses Aqui", Francesc Miralles

Nas livrarias a 14 de Maio

«Contigo no iglu


Paris ficara já longe. Ainda que tivesse descolado há apenas uns minutos de Charles de Gaulle, as nuvens que envolviam o Airbus 319 faziam-me sentir numa espécie de limbo: num lugar etéreo onde só têm cabimento as recordações e os sonhos.
Depois de tudo o que sucedeu durante aquelas últimas semanas, era estranho para mim regressar a casa. Temia encontrar-me como Charlton Heston no final de O Planeta dos Macacos, quando este descobre a Estátua da Liberdade semienterrada na areia. O último vestígio de um passado ao qual já não poderá regressar.
Porque, será possível voltar a ser quem eras quando tudo se desmoronou ao teu redor?
Ao fechar os olhos pareceu-me que as nuvens penetravam no meu interior, diluindo os últimos vestígios de consciência. Antes de me deixar vencer pelo sono, vislumbrei uma cena há muito esquecida: a minha primeira aventura no difícil ofício de amar. Resisti à sonolência, disposto a ser espectador da minha própria love story. Dizem que o passado explica o presente e determina o futuro. Comecei a visionar o filme das minhas catástrofes sentimentais em busca de pistas para entender o que acabara de viver.

Naquela época eu tinha quinze anos e nunca antes me tinha apaixonado. Nem sequer imaginara que algo do género me pudesse acontecer. Vivia à margem dos meus colegas, que me repudiavam por me vestir impecavelmente e ter os trabalhos de casa em dia. Quando passava junto de um grupo de rapazes que partilhavam tabaco e confidências sexuais – a maioria inventadas –, as vozes calavam-se até que eu passasse ao largo, ou então recebia uma chuva de insultos.
As raparigas eram para mim um mundo distante e perigoso. Repugnavam-me os seus lábios pintados, o seu desagradável costume de mascar pastilha elástica e os perfumes de imitação que se entremisturavam na sala de aula de maneira ofensiva. Também não entendia a metamorfose que haviam experimentado aqueles corpos: de um ano para o outro, pareciam ter-se dotado de poderosas curvas com as quais desafiavam todo o sector masculino.
Tinha curiosidade, isso sim. Intrigava-me saber se aquelas formas redondas eram reais ou apenas produto de uns algodõezinhos habilmente colocados para atiçar a imaginação.
Numa das poucas festas para a qual fui convidado naquela época, uma tal Ruth – a vampe da turma – pediu-me ao ouvido que saísse ao jardim discretamente, que ela se escapuliria do grupo para ir ter comigo.
Fiz o que me pedia. Era uma noite excepcionalmente fria para o clima temperado de Barcelona, e o meu casaco estava pendurado no vestíbulo daquele rés-do-chão. Não o podia ir buscar sem chamar a atenção dos outros, que dançavam, bebiam e fumavam como se aquela fosse a última noite do mundo. Portanto, aguardei gelado que ela aparecesse. Não fazia ideia do que faria então – nem sequer sabia como se punha a língua num beijo –, só estava consciente de que ia acontecer algo importante.
O que sucedeu foi que a voluptuosa Ruth nunca apareceu. Depois de um quarto de hora a tremer no jardim, agasalhado apenas com uma fina camisola de lã, regressei ao salão sem entender nada.
Ali me esperavam, em impaciente silêncio, todos os convidados da festa, capitaneados pela que me tinha marcado o encontro no jardim. Receberam-me com uma gargalhada humilhante que jamais esqueceria.

Depois daquela noite não quis saber mais de raparigas. Evitava-as deliberadamente e sentia-me forte por isso. Até que, um ano depois, apareceu uma para a qual eu não estava vacinado.
Encontrava-me na biblioteca da escola, a preparar-me para os testes do primeiro trimestre, quando o estalido de uma grossa pasta sobre a madeira me sobressaltou. Embora a longa mesa estivesse vazia, assim como a maior parte do recinto, uma das novas raparigas daquele curso tinha decidido sentar-se ao meu lado.
Olhei-a de soslaio enquanto fingia rever uns apontamentos de língua espanhola. Naquela altura não sabia que um homem nunca escolhe, é escolhido, e Sonia – aquele era o seu nome – tinha-me escolhido para passar por uma dura prova.
Até então não tinha reparado nela. Era mais para o gordinha, com olhos pequenos e brilhantes, e um penteado curto e irregular que lhe dava um toque extravagante.
– Que porcaria de lista – exclamou ao ver-me sublinhar com o lápis uma coluna de adjectivos.
Intimidado, cravei o meu olhar no papel sem saber o que dizer.
Mas Sonia voltou à carga:
– Há palavras que deviam ser nomeadas, não achas?
– Nomeadas? O que é que queres dizer com isso?
– Expulsas do dicionário, como os palermas que vão aos concursos de televisão.
Gostei daquilo. Mais do que o comentário em si, fascinava-me a segurança com que ela se exprimia.
– E que palavras expulsarias? – atrevi-me a perguntar.
– Fez-se um questionário entre os alunos da secundária, e as candidatas a irem para o galheiro são palavrões como adail, crisol ou incomensurável. E também palavras do tempo da Maria cachucha como parapeito ou argênteo.
– Aponta regressão na lista – acrescentei, divertido, enquanto riscava a palavra dos meus próprios apontamentos –, assim como fagocitar e ajuizamento.
– Sim, elas que vão para a merda – respondeu Sonia levando um cigarro à boca. – Acompanhas-me lá fora a fumar?
Assim começou o primeiro romance verdadeiramente catastrófico da minha vida. Fascinado com a ideia de que uma rapariga com personalidade, ainda que não entrasse no cânon estético geral, tivesse reparado num pobre diabo como eu, a minha imaginação não tardou a pô-la num pedestal. Justamente nessa altura ela cansou-se de mim.
[...]»
.

1 comentário:

Vânia disse...

Li "Amor em Minúsculas" e adorei!

E que tal um passatempo para este novo livrinho do autor, aqui no blog? :D