segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Pré-lançamento

Leia um excerto:



«David Sedaris, radialista e escritor, é um dos melhores humoristas norte-americanos e quase tudo o que escreve acaba na lista dos mais vendidos do New York Times. Em 2008, foi uma das atracções da Festa Literária Internacional de Paraty, onde contou alguns dos espisódios hilariantes reunidos neste Diário de Um Fumador. »
Revista LER, Setembro 09
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Diário de Um Fumador
David Sedaris

«Na piscina a que costumo ir actualmente, uma das frequentadoras habituais é uma mulher com síndrome de Down. É bastante gorda e usa um fato-de-banho antiquado, daqueles com uma saia rodada. Usa também uma touca que ata no queixo e que tem umas flores de borracha. É curiosa a satisfação que sinto de cada vez que consigo chegar primeiro que ela de um lado ao outro da piscina.
– Consegui ganhar-lhe três vezes em quatro – contei a Hugh na primeira vez em que nadámos juntos. – Dei-lhe mesmo uma tareia.
– Deixa -me ver se percebi bem – disse ele. – Ela é gorda. Tem a tua idade. E tem síndrome de Down?
– Sim, e eu ganhei. Não é fantástico?
– Ela sabia ao menos que estavam a fazer uma corrida?
Odeio quando começa com estas coisas. É um desmancha-prazeres.
Deixei de lhe contar quando consigo vencer os velhos. Quer dizer, as pessoas mais velhas que eu – mulheres de setenta e oitenta anos. Depois, há também as crianças. Estava no estado de Washington, numa pequena piscina do YMCA, quando um rapaz entrou na raia de corrida e pôs a cabeça de fora, como uma foca. Ficaria depois a saber que tinha nove anos, mas, na altura, era apenas um rapaz, um pouco gordinho, com um penteado estranho. Parecia que tinha ido ao barbeiro com uma fotografia de Hitler, de tão estranho que era. Começámos a conversar e, quando lhe disse que não era grande nadador, desafiou-me para uma corrida. Acho que pensou que, como a maioria dos adultos, eu abrandaria intencionalmente para o deixar ganhar, mas não fazia ideia com quem se estava a meter. Precisava de me sentir confiante, e uma vitória é sempre uma vitória. Por isso, nadei o mais depressa que consegui e derrotei-o em grande estilo.
Pensei que a história tinha acabado por ali – que iria aceitar a derrota e seguir com a sua vida –, mas, cinco minutos depois, veio ter comigo outra vez e perguntou -me se eu acreditava em Deus.
– Não – respondi.
– Porquê?
Reflecti durante um segundo.
– Porque tenho pêlos nas costas, e muitas outras pessoas que matam e roubam e fazem coisas horríveis, não têm. Um deus a sério não deixaria que isso acontecesse.
Para mim, a conversa estava acabada, mas, antes que pudesse continuar a nadar, bloqueou-me o caminho.
– Foi Deus que te deixou ganhar a corrida – disse. – Tocou-te na perna para poderes nadar mais depressa, e foi por isso que me venceste.
Parecia mesmo um Hitler, com os olhos a faiscar como dois carvões incandescentes.
– Se Deus sabe que não acredito nele, porque é que haveria de me ajudar? – perguntei. – Se calhar, em vez de me ajudar a ganhar, Deus resolveu fazer-te perder. Já pensaste nisso?
Continuei a nadar, mas fui de novo abordado no fim da volta seguinte.
– Tu vais para o Inferno – disse o rapaz.
– Isso ainda é por ter ganho aquela corrida?
– Não – respondeu. – Tem que ver com Deus e, se não acreditares n’Ele, vais arder no Inferno para o resto da eternidade.
Agradeci-lhe o conselho e continuei a nadar, grato pelo facto de na igreja a que costumava ir quando era pequeno a missa ser toda em grego. Eu e as minhas irmãs não fazíamos ideia do que o padre estaria a dizer e, quando somos crianças, talvez seja melhor assim. O Pequeno
Hitler ainda só estava na terceira classe e já estava a fazer planos para a vida depois da morte. Pior ainda, estava a fazer planos para a minha vida depois da morte. Já no balneário, fiquei a pensar que não deveria tê-lo contrariado. É uma loucura discutir religião com uma criança.
Especialmente no YMCA. Mas o que me tinha incomodado era a sua insistência de que eu tinha recebido uma ajuda injusta, de que Deus me tinha empurrado para conseguir chegar mais depressa ao fim. A sério! Será que não sou capaz de vencer um rapaz de nove anos sozinho?

TRÊS
Quando penso nos anos em que fui fumador, a única coisa de que me arrependo é da quantidade de lixo que produzi, todas aquelas centenas de milhares de beatas que esmaguei com o pé. Ficava sempre indignado quando via alguém a despejar o cinzeiro do carro para a rua. «Que porco!», pensava. Mas limitavam-se a fazer por atacado o que eu fazia peça por peça. Numa cidade, desculpamo-nos dizendo que haverá alguém que limpa, alguém que não teria emprego se não atirássemos aquela beata para o chão. Ou seja, estamos a fazer uma coisa boa, estamos a ajudar. E, além disso, não era realmente lixo, não era como deitar fora uma lâmpada fundida. Ninguém iria cortar um pé numa beata e, por causa da cor, quase que se confundia com a paisagem, como se fosse uma casca de amendoim. Era «orgânico», «biodegradável» – uma dessas palavras que significam «não faz mal».
Continuei a deitar beatas para o chão até aos quarenta e oito anos, quando fui preso por causa disso. Foi na Tailândia, o que torna a história ainda mais embaraçosa. Quando conto a alguém que fui apanhado pela polícia em Banguecoque, ficam a pensar que, depois de ter feito sexo com uma criança de oito anos, a virei do avesso e a assei nas brasas, sendo que esta última parte, cozinhar sem ter uma licença, é ilegal segundo a lei tailandesa. «Vale tudo», era a impressão que tinha, e por isso, fiquei surpreso quando, vindos do nada, dois polícias se aproximaram de mim. Um deles pegou-me pelo braço direito, o outro pelo braço esquerdo e levaram-me para uma tenda castanha. «Hugh!», chamei mas, como sempre, estava vinte passos à minha frente e só reparou que eu tinha desaparecido dez minutos depois. Os polícias mandaram-me sentar a uma mesa comprida e fizeram sinal para que ficasse quieto. Depois, foram-se embora, deixando-me a pensar no que poderia ter feito para os ofender.
Antes do meu encontro com a polícia, eu e Hugh tínhamos visitado o museu de criminologia, uma triste construção artesanal cujo expoente máximo era um homem suspenso numa caixa de vidro e a escorrer um líquido âmbar para uma panela rasa de esmalte. A tabuleta, que estava escrita em tailandês e traduzida para inglês, dizia, simplesmente: «Violador e Assassino». Parecia a tabuleta de uma serpente embalsamada num museu de história natural, uma forma de dizer: «É este o aspecto desta criatura, mantenha os olhos bem abertos.»
Tirando o líquido âmbar, o violador e assassino era bastante bem-parecido, tal como os polícias que me tinham prendido na rua, e o homem que nos tinha vendido o almoço. Estavam apenas 150 graus na rua, por isso, depois de sairmos do museu de criminologia, Hugh teve a ideia de irmos comer uma sopa a ferver cozinhada, basicamente, num caldeirão de aço. Não havia mesas, por isso sentámo-nos em baldes virados ao contrário e pusemos as tigelas a escaldar em cima dos joelhos. «Vamos sentar -nos debaixo do sol abrasador e queimar a pele da língua!»: é a ideia que um Hamrick tem de uma tarde bem passada.
Depois, tínhamos ido visitar o palácio. Não é o tipo de coisa que me interesse muito, mas não me tinha queixado, nem insultado a família real. Não tinha roubado nada nem escrito coisas com uma Caneta Mágica, por isso, qual seria o problema?
Quando os polícias voltaram, estenderam-me uma caneta e puseram uma folha de papel à minha frente. O documento estava escrito em tailandês, uma língua que me parece mais um motivo decorativo de um bolo.
– O que é que eu fiz? – perguntei.
E o homem apontou para trás de mim, onde um cartaz anunciava uma multa de mil bahts por deitar lixo para o chão.
– Deitar lixo para o chão? – disse.
E um dos polícias, o mais bonito dos dois, tirou um cigarro invisível da boca e atirou-o para o chão.
Apeteceu-me perguntar se, em vez da multa, me poderia talvez açoitar, mas acho que isso é em Singapura, não na Tailândia, e não queria parecer pouco sofisticado. Acabei por assinar o papel, pagar o equivalente a trinta dólares e sair para a rua à procura da minha beata, que acabei por encontrar numa sarjeta, a boiar junto de uma cabeça de pato e de um saco de plástico com leite de coco, coberto de moscas.
Não há problema, pensei, Multem o ocidental. Mas, a sério, não seria eu tão culpado como as pessoas que tinham deitado aquelas outras coisas para o chão? Ou se suja a rua ou não se suja a rua, e eu fazia claramente parte do grupo A, um tipo de pessoas que sempre considerei, talvez injustamente, estrangeiras e ignorantes. Tinha essa ideia por causa da minha avó grega. Yiayia viveu connosco quando éramos crianças e era de longe a maior campeã a atirar lixo para a rua. Latas, garrafas, jornais de domingo, qualquer coisa que coubesse pela janela do carro, atirava pela janela do carro.
– O que é que estás a fazer? – gritava o meu pai. – Neste país não se atira lixo para a rua.
Yiayia piscava os olhos por detrás das suas grossas lentes. E depois dizia: «Ah», e voltava a fazer o mesmo dois minutos depois, como se o recibo da mercearia fosse lixo, mas a revista Time, não. Acho mesmo que guardava os lenços sujos e os frascos de remédios vazios dentro da carteira até estar no banco de trás da nossa carrinha.
– Os gregos são assim – dizia a nossa mãe, acrescentando que a sua própria mãe jamais atiraria o que quer que fosse pela janela de um carro. – Nem sequer um caroço de pêssego.
Durante o período em que a minha avó viveu connosco, estávamos sempre a pensar na questão de atirar lixo para a rua, em parte por causa da televisão. Nos anúncios da campanha
«Mantenha a América Limpa», aparecia um índio a chorar, desfeito pela visão de um ribeiro cheio de lixo.
– Estás a ver isto? – perguntava a Yiayia. – Aquele lixo todo na água. Não se faz.
– Estás a perder tempo – dizia Lisa. – Ela nem sequer percebe que o miúdo é um índio.
O nosso pai temia que a minha avó fosse um mau exemplo para nós, mas, na verdade, funcionou ao contrário. Não sonhamos sequer em atirar o que quer que seja pela janela do carro, a menos, claro, que se trate de uma beata, que não é apenas lixo, mas lixo com uma ponta incandescente.
– Que horror aquele incêndio florestal – dizíamos. – Nem quero pensar no tipo de pessoas que fazem coisas destas. É de loucos.
Não posso dizer que, depois de voltar de Banguecoque, nunca mais apaguei um cigarro no chão. Mas posso dizer que nunca mais o fiz sem me sentir mal. Se houvesse um caixote do lixo por perto, deitaria lá a beata e, se não houvesse, enfiava-a na dobra das calças ou tentava escondê-la debaixo de qualquer coisa, uma folha, por exemplo, ou um papel deitado para o chão por outra pessoa, como se a sombra fizesse com que se desintegrasse mais depressa.
Agora que deixei de fumar, comecei a apanhar lixo – não às toneladas, mas um pouco todos os dias. Se, por exemplo, vejo uma garrafa de cerveja deixada num banco de um parque, apanho-a e deito-a no caixote do lixo mais perto. E digo: «Este estúpido de merda, preguiçoso, nem sequer foi capaz de deitar fora a merda da garrafa.»
Gostava de conseguir cumprir a minha penitência com elegância, mas duvido que isso possa acontecer num futuro próximo. As pessoas vêem-me a apanhar lixo e acham, com razão, que estou a ser pago para o fazer. Não querem que fique desempregado, por isso em vez de deitarem fora o seu garfo de plástico, deixam-no cair, para eu ter ainda mais coisas para limpar. Pacotes de batatas fritas, copos de plástico, bilhetes de autocarro usados... é engraçado, mas a única coisa que nunca apanho são beatas de cigarro. Não é que tenha nojo dos germes. Tenho medo que, ao sentir uma delas entre os dedos, me passe pela cabeça, de forma muito nítida, como me saberia bem fumar um cigarro agora.»
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À venda a partir de 18 de Setembro.
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