sexta-feira, 21 de maio de 2010

Excerto - "O Beijo dos Elfos"

«[...]

Na manhã seguinte, Laurel acordou com um leve formigueiro entre as omoplatas. Esforçando-se por não entrar em pânico, correu até à casa de banho e esticou o pescoço para examinar as costas no espelho.

O alto era maior do que uma moeda americana de vinte e cinco cêntimos!

Aquilo não era nenhuma borbulha. Tocou-o com cuidado e sentiu um formigar estranho e persistente em todos os sítios onde os dedos tinham roçado. Num acesso de pânico, agarrou a camisa de dormir ao peito e saiu a correr para o corredor em direcção ao quarto dos pais. Tinha acabado de levantar a mão para bater à porta quando se obrigou a parar e a respirar fundo.

Olhou para baixo, para si mesma, e sentiu-se de súbito bastante ridícula. O que é que lhe passara pela cabeça? Estava no corredor com pouco mais do que a roupa interior vestida. Envergonhada, afastou-se da porta dos pais e regressou furtivamente à casa de banho, fechando a porta o mais depressa e discretamente que conseguia. Voltou a virar-se de costas para o espelho e examinou o inchaço. Deslocou-se para o contemplar de vários ângulos diferentes, até se convencer de que era muito menor do que julgava.

Laurel havia sido educada com a ideia de que o corpo humano sabia cuidar de si mesmo. A maior parte das coisas, quando deixadas em paz, resolviam-se por si. Tanto o pai como a mãe se regiam por esse princípio. Eles nunca iam ao médico, nem sequer para obterem receitas de antibióticos.

– É só uma borbulha gigantesca e vai desaparecer por si – tranquilizou ela o seu próprio reflexo, com um tom de voz que soava exactamente ao da mãe.

Vasculhou na gaveta da mãe e encontrou um recipiente com o unguento que ela preparava todos os anos. Tinha alecrim, lavanda, óleo de árvore de chá e sabe-se lá que mais, e a mãe aplicava-o em tudo.

Mal não iria fazer.

Tirou uma dedada do unguento de odor doce e começou a esfregá-lo nas costas. Com o formigueiro causado pela irritação das mãos sobre o inchaço e o ardor do óleo de árvore do chá, as costas de Laurel estavam ao rubro quando enfiou a camisa de noite pela cabeça e, com os ombros comprimidos contra a parede, fugiu para o quarto.

Optou por uma T-shirt larga de manga curta e costas completas, ao estilo das de basebol, para aquele dia. A maior parte das camisolas cavadas que possuía provavelmente ocultariam o alto, mas não queria arriscar. Aquela coisa não podia crescer mais sem se tornar toda repelente, e, quando isso acontecesse, Laurel preferia tê-la bem escondida. Formigava sempre que algo roçava nela – o cabelo comprido, a T-shirt, quando a enfiava pela cabeça – e, claro, sempre que a tocava para comprovar que era real. Quando, por fim, se encaminhou para o piso de baixo, Laurel estava convencida de que todos os nervos do seu corpo comunicavam com o inchaço.

Quando chegou a quinta-feira, tornou-se insustentável continuar a acreditar que o que tinha nas costas não passava de uma borbulha. Não só a coisa continuara a crescer ao longo dos últimos dois dias, como parecia estar a crescer mais rápido. Naquela manhã, era do tamanho de uma bola de golfe.

Laurel descera para tomar o pequeno-almoço determinada a contar aos pais sobre aquele estranho inchaço. Chegara mesmo a tomar fôlego e a abrir a boca para desabafar de uma vez por todas.

No entanto, à última da hora, acobardara-se e limitara-se a pedir ao pai para lhe passar o melão.

Com as T-shirts que andava a usar nos últimos dias e o encobrimento que o cabelo comprido lhe dava, agora sempre solto, ninguém reparara ainda no alto, mas seria apenas uma questão de tempo – especialmente, se continuasse a crescer. «Se», repetia Laurel para si mesma vezes sem conta, «se continuar a crescer. Talvez aquilo da mãe tenha resolvido o problema.»

Já havia três dias seguidos que aplicava o unguento naquilo, mas não parecia estar a ter grande efeito. Também, pudera! Algo que ficava daquele tamanho tão depressa não podia ser uma coisa passível de ser tratada apenas com um oleozito de árvore do chá, pois não? Talvez fosse um tumor. Tinha a certeza de ter lido alguns artigos sobre pessoas que tinham tido tumores espinais. Laurel respirou fundo. Um tumor parecia-lhe uma causa bastante provável.

– Ei? Por acaso estás a ouvir-me? – A voz de Chelsea interrompeu-lhe os pensamentos e ela virou o rosto para a amiga.

– Quê?

Chelsea simplesmente riu-se.

– Bem me parecia que não. – Em seguida, mais brandamente: – Estás bem? Estavas completamente nas nuvens.

Levantou a cabeça e, por um segundo, não foi capaz de se lembrar da aula que ia ter.

– Estou óptima – murmurou, irritadamente. – Estava só a pensar.

Chelsea perscrutou-lhe o rosto por alguns segundos e depois ergueu uma sobrancelha céptica.

– Está bem.

David juntou-se-lhes e, quando Chelsea os deixou para se encaminhar para a sua aula, Laurel tentou andar mais rápido de forma a avançar à frente dele. Ele estendeu o braço e puxou-a para trás.

– Vais tirar o pai da forca, Laury? Ainda faltam três minutos para tocar.

– Não me chames isso – retorquiu com brusquidão antes que o pudesse evitar.

Ele cerrou a boca e não disse mais nada enquanto o fluxo de pessoas os contornava.

Laurel deu voltas à cabeça em busca de palavras para se desculpar, mas o que é que havia de dizer? «Desculpa, David, é que estou enervada porque sou capaz de ter um tumor.» Em vez disso, afirmou:

– Não gosto de alcunhas.

Entretanto, já ele firmara o seu sorriso valente.

– Não sabia. Desculpa. – Passou os dedos pelo cabelo. – Estás… – A voz perdeu-se e ele pareceu mudar de ideias. – Anda; eu acompanho-te à tua aula.

Agora sentia-se embaraçada ao caminhar ao lado dele. Virou-se para ele quando chegaram à sala, e acenou.

– Tchau.

– Laurel?

Deu meia-volta para olhar novamente para ele.

– O que fazes no sábado?

Hesitou. Estava ansiosa por voltar a combinar algo e, até àquela manhã, tinha dado voltas à cabeça, à procura de uma forma descontraída de colocar a pergunta. No entanto, talvez não fosse uma boa ideia.

– Pensei que podíamos reunir um grupo e fazer um piquenique, talvez com uma fogueira. Conheço um ponto óptimo na praia. A Chelsea disse que vinha, e também o Ryan, a Molly e o Joe. E houve mais algumas pessoas que disseram que talvez fossem.

Comida, areia e uma fogueira fumarenta. Nada daquilo lhe parecia divertido.

– Está algum frio, na verdade não dá para ir para a água, mas… sabes como é. Normalmente, há sempre alguém que é empurrado. É divertido.

O sorriso falso de Laurel esmoreceu. Odiava o toque da água salgada na pele. Mesmo depois de um duche, continuava a senti-la; como se o sal tivesse penetrado nos poros. Da última vez que nadara no oceano, acabara por passar os dias seguintes com uma sensação de moleza e de cansaço. Além disso, não haveria forma de ocultar o inchaço – ou o que quer que aquilo fosse – com um fato de banho.

Estremeceu ao indagar qual seria o seu tamanho dentro de dois dias! Não podia ir, mesmo se quisesse.

– David, eu… – Odiava dizer-lhe que não. – Não posso.

– Porque não? – inquiriu.

Podia dizer-lhe que tinha de trabalhar na livraria – até às semanas anteriores, ela tinha passado praticamente todos os sábados enfiada lá a ajudar o pai –, mas não conseguia forçar-se a mentir. Não a David.

– Simplesmente, não posso – murmurou e esquivou-se pela porta sem se despedir.

Pela manhã de sexta-feira, o alto tinha o tamanho de uma bola de softball. Era definitivamente um tumor. Laurel nem se deu ao trabalho de ir à casa de banho para o examinar. Conseguia senti-lo.

T-shirt alguma seria capaz de ocultar aquilo.

Laurel teve de vasculhar no fundo do roupeiro até encontrar uma blusa fofa que ao menos camuflasse a protuberância. Esperou no quarto até ser hora de ir para a escola e depois correu escadas abaixo e porta fora apenas com um grito de «Bom dia» e «Adeus» para os pais.

O resto do dia arrastou-se interminavelmente. O inchaço formigava agora a toda a hora, e não apenas quando lhe tocava. Não conseguia pensar em mais nada; era como um zumbido persistente na cabeça. Não falou com ninguém à hora de almoço e sentiu-se mal por isso, mas não conseguia concentrar-se em nada com as costas a arderem-lhe daquela maneira.

Quando, por fim, terminou a última aula, ela tinha dado quatro vezes uma resposta errada às perguntas da professora. As questões tinham-se tornado progressivamente mais fáceis, como se a señora Martinez estivesse a tentar dar-lhe uma oportunidade para se redimir, mas a professora bem podia estar a falar suaíli. Assim que deu o toque de saída, Laurel saltou da cadeira e encaminhou-se para a porta, à frente de todos. E, definitivamente, antes que a señora Martinez a pudesse encurralar para a questionar sobre o seu desempenho catastrófico.

Viu David e Chelsea a tagarelarem junto ao cacifo desta, pelo que tomou o sentido contrário e apressou-se a sair pelas portas das traseiras, a rezar para que nenhum deles se virasse e a reconhecesse pelas costas.

Assim que se escapou da escola, atravessou o campo de futebol, sem saber ao certo para onde ir numa cidade que ainda lhe era pouco familiar. Enquanto andava, não conseguia afastar o crescente temor. «E se for cancro? O cancro não desaparece simplesmente. Talvez devesse contar à mãe.»

– Segunda-feira – murmurou entre dentes, com o ar frio a açoitar-lhe o cabelo. – Se não desaparecer até segunda, eu conto aos meus pais.

Trepou pelas bancadas, com os pés a martelaram a cada degrau de metal que subia, até alcançar o topo. Permaneceu encostada à balaustrada a contemplar a linha do horizonte a ocidente, pelo cimo das árvores. Estar tão acima da área circundante fazia-a sentir-se separada e à parte. Era apropriado.

Ergueu a cabeça bruscamente ao ouvir passos atrás de si. Quando se virou, deparou-se com o rosto bastante embaraçado de David.

– Oi – cumprimentou ele.

Laurel não disse nada enquanto o alívio e a irritação que sentia se gladiavam na sua mente. O alívio estava a ganhar.

Ele acenou com a mão para o lugar onde ela estava.

– Importas-te que me sente?

Laurel permaneceu quieta por um momento, em seguida sentou-se na bancada e deu uma palmadinha no lugar ao lado com um sorriso ténue.

David sentou-se cautelosamente junto a ela, como se não confiasse no convite.

– Não era minha intenção seguir-te – desculpou-se, inclinando-se para a frente e apoiando os cotovelos nos joelhos. – Ia esperar por ti lá em baixo, mas... – encolheu os ombros – que queres que te diga? Sou impaciente.

Laurel não respondeu.

Permaneceram um longo tempo sentados em silêncio.

– Estás bem? – perguntou David, com a voz a soar anormalmente alta ao ressaltar nas bancadas metálicas vazias.

Laurel sentiu as lágrimas queimarem-lhe os olhos, mas obrigou-se a pestanejar para as conter.

– Hei-de ficar.

– É só que tens andado tão quieta a semana toda.

– Desculpa.

– Eu… eu fiz alguma coisa?

Ela ergueu a cabeça bruscamente.

– Tu? Não, David. Tu… tu tens sido óptimo. – Sentiu a culpa instalar-se e forçou um sorriso. – Só tive um dia mau, só isso. Com o fim-de-semana passa-me. Na segunda estarei melhor. Prometo.

David disse que sim com a cabeça e voltou a instalar-se o silêncio, pesado e incómodo. Em seguida, ele aclarou a voz.

– Posso acompanhar-te a casa?

Ela abanou a cabeça.

– Vou ficar aqui um bocado. Eu fico bem – acrescentou.

– Mas… – Não continuou. Limitou-se a assentir, depois levantou-se e começou a afastar-se. Em seguida, virou-se. – Se precisares de alguma coisa sabes o meu número, certo?

Laurel respondeu afirmativamente com a cabeça. Tinha-o apontado no quadro de avisos da família assim que chegara a casa e agora já o sabia de cor.

– Tudo bem. – Ele deslocou o peso de um pé para o outro e depois virou-se. – Agora vou-me embora.

Precisamente quando estava a desaparecer de vista, Laurel chamou-o.

– David?

No entanto, quando se virou para ela, com o rosto tão sincero e aberto, ela perdeu a coragem.

– Diverte-te amanhã – disse ela, sem grande convicção.

O rosto dele abateu-se ligeiramente, mas ele anuiu, deu meia-volta e continuou a afastar-se.

Nessa noite, Laurel sentou-se no toucador da casa de banho a fitar as costas. Caíam-lhe lágrimas pelas faces enquanto aplicava mais uma vez o unguento. Ainda não surtira qualquer efeito e a razão lógica dizia-lhe que nada faria desta vez, mas alguma coisa ela tinha de tentar.
[...]»

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