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À Beira do Abismo, Raymond Chandler
«Como o seu improvável colega de escola P. G. Woodhouse, Raymond Chandler manufacturava objectos nostálgicos. Fixou na imaginação popular uma paisagem intemporal e imediatamente reconhecível – Los Angeles, gabardinas, chuva, noir – erguida não nas plausabilidades do realismo mas no puro artifício. Como Wodehouse, como Hemingway, como Graham Greene, Chandler pertence a uma linhagem simultaneamente austera e barroca, com uma economia estatística cuja unidade básica é o maneirismo de escrivaninha. A sua grande inovação foi a comparação cínica e concisa na qual a informação essencial é comprimida e brutalmente arremessada: pestanas que se abrem “como cortinas de teatro”, caules de plantas como “dedos de mortos acabados de lavar”… Os seus romances são frequentemente elogiados por terem dado “atmosfera” ao romance policial, mas o propósito do seu estilo não é tanto evocar um ambiente como registar um modo específico de olhar para as coisas. “À Beira do Abismo” está narrativamente à beira do abismo (o enredo é caótico, e pelo menos um dos crimes é arquivado pelo autor), mas, com um narrador omnisciente, a história desfaleceria por completo, o estilo de Chandler e a personalidade de Marlowe. Porque é incorruptível. Marlowe vê corrupção em tudo o que o rodeia: o seu rígido código ético é constantemente testado – por pessoas, pela paisagem. No império do kitsch que é Los Angeles seria impossível sugerir a corrupção do poder instalado e do dinheiro antigo, portanto o que Chandler força Marlowe a contemplar é a corrupção do que é novo e barato e superfícial – do que quer parecer mais do que aquilo que é. Um aristocrata espartano à deriva neste pântano novo-rico. Marlowe é um acidente sexual à espera de acontecer nas suas interações com o sexo feminino, a turbulência interior está sempre a uma passo de transbordar. “À Beira do Abismo”, com a sua carga anti-erótica de pornografia, ninfomaníacas violentas e “obscenidade indescritível”, é, nesse aspecto, uma provação muito maior para o protagonista do que para o leitor, que mesmo sem saber quem matou quem nunca se aborrece.»
Estrelas: ****
Rogério Casanova, Actual, Expresso, 3 de Outubro de 2009
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