sexta-feira, 17 de junho de 2011

Excerto: «Pensei Que Tinhas Morrido»

«No Inverno de 1998, no final do século XX, numa pequena cidade universitária nas margens do rio Connecticut, no passeio em frente a uma casa suficientemente próxima da linha do comboio para que os quadros nas paredes precisassem constantemente de ser endireitados, ainda que nunca ninguém os endireitasse, Paul Gustavson, tendo já bebido demasiado, descalçou a luva da mão direita, enfiou-a debaixo do ombro esquerdo, e começou a revirar os bolsos das calças à procura da chave de casa.

A neve caía com força, o que significava que os limpa-neves iriam trabalhar toda a noite, desimpedindo as estradas. Era princípios de Março. Na manhã seguinte, Paul teria de limpar a neve com uma pá, um favor que fazia à sua senhoria, que vivia no andar de cima, e que há anos não aumentava a renda, em parte por causa desses favores que lhe faria. Quando Paul saísse da cama, o seu dinâmico vizinho já teria acabado de limpar a neve da sua entrada, espalhando sal, espalhando areia, provavelmente secando a rua com um secador de cabelo. Paul não se importava de limpar, ainda que, tendo crescido em Mineápolis, já tivesse limpado neve suficiente quando era criança. Teria de estar no aeroporto ao meio-dia para apanhar o avião de volta a Twin Cities, uma viagem que talvez não tivesse sido necessária se não tivesse sido tão preguiçoso. Há dias melhores e dias piores…
– Já cheguei – disse Paul, entrando em casa e fechando a porta por causa do frio.
– Pensei que tinhas morrido – disse a cadela.
Chamava-se Stella, e era cruzada de pastor alemão e labrador de pêlo dourado, mas mais parecida com este último. Felizmente, tinha herdado também a personalidade do lado labrador da família, recebendo dos alemães apenas uma certa limpeza congénita e um forte sentido de protecção que, sendo ela o cachorrinho ómega da ninhada, significava apenas que se sentia muitas vezes uma vítima.
– Mais uma vez, não morri.
– Que alegria enorme – respondeu ela, secamente.
Stella não tinha qualquer noção de permanência e, portanto, supunha que Paul tinha morrido sempre que não o conseguia ver, ouvir ou cheirar.
– Como correu a noite?
– Fui ao Bay State ouvir blues – respondeu Paul.
Sentiu a cabeça andar à roda quando se baixou para coçá-la atrás da orelha, fazendo chocalhar a coleira.
– Já te apercebeste de que já só és um bocadinho menos rotineiro que um gato?
– Não é preciso insultares-me. Queres ir passear ou não?
– Passear? Sim. Um passeio vinha mesmo a calhar. Está frio lá fora? Não me apetece passear se estiver mau tempo.
– Não existe mau tempo – respondeu-lhe ele. – Só más roupas.
Ela ainda conseguia ir até à porta, apesar de, por vezes, Paul ter de levantar-lhe a parte traseira para ajudá-la a levantar-se da cama. Habitualmente, levava-a consigo sempre que saía, mas naquela noite tinha-a deixado em casa por causa da neve. Viviam num apartamento no rés-do-chão de uma casa de dois andares, entre a linha do comboio e o cemitério, em Northampton, uma pequena cidade universitária no Oeste de Massachusetts.
Stella parou no alpendre, olhando apreensiva para a neve, e depois deu cautelosamente um passo em frente.
– Espera – disse Paul, pegando nela ao colo e descendo os três degraus de cimento até ao passeio.
Tinha construído uma rampa para que ela subisse, feita com uma porta velha com quadrados de alcatifa pregados, mas Stella tinha dificuldade em descer pela rampa. Pousou-a cuidadosamente no chão. Ela caminhou à sua frente, cheirando os arbustos dos Sliwoskis, e os da casa ao lado dessa, e os sítios onde costumava parar e cheirar todas as noites ao longo dos sete anos que ali viviam. De vez em quando, tropeçava.
Já eram dois.
Paul respirou fundo pelo nariz. Sentiu flocos de neve na cara. Os vizinhos do outro lado da rua ainda tinham as luzes de Natal. Os da casa ao lado estavam a ver televisão. Na casa da esquina, olhou para cima.
A estudante que lá vivia, a Rapariga do Diário, como a chamava, estava outra vez sentada ao computador, o seu perfil iluminado de azul na janela do segundo andar. Às vezes, estava a pentear o cabelo. Era belíssima.
Olhou para o chão à luz do candeeiro da esquina. A neve caía em flocos suficientemente grossos para fazer sombras que, quando os flocos caíam, se cruzavam no círculo de luz que emanava da lâmpada de sódio do candeeiro. Deixou-se ficar no ponto exacto de convergência das sombras e imaginou que estava a absorver uma espécie de energia boreal, e depois começou a andar antes que alguém o visse.
– Já te disse que vais passar uma semana a casa do Chester? – perguntou à cadela.
– Tudo bem – respondeu Stella. – Gosto do Chester.
– Porque não haverias de gostar?
– Porque é que vou para casa do Chester?
– Tenho de ir a casa. O meu pai teve um AVC.
– O que é um AVC?
– É quando uma parte do cérebro morre – disse Paul. – É causado ou por um coágulo de sangue que bloqueia uma artéria e que faz com que o cérebro não receba sangue suficiente, ou por uma artéria que rebenta e que faz com haja demasiado sangue. Estive a ler sobre o assunto.
– E demasiado sangue é mau, e pouco sangue também é mau?
– Acho que sim – respondeu Paul.
– Que dilema.
– Um dilema – concordou Paul. – Uma ironia.
– Então, parte do cérebro do teu pai morreu? – perguntou ela.
– É mais ou menos isso – disse Paul.
Continuaram a andar.
– Que parte? Quantas partes há?
– Imensas. Não sabem ainda qual é a gravidade. Estive a conversar com um tipo no bar que me disse que, se for descoberto a tempo, os médicos conseguem limitar os danos.
– Quem te disse isso foi um tipo com quem falaste no bar?
– Sim.
– É sempre uma fonte segura de informação médica – disse ela. – Lamento muito o que aconteceu ao teu pai.
– Estava a limpar a neve do passeio.
– O teu pai ou o tipo do bar?
– O meu pai. Por isso, a culpa é minha. Devíamos ter-lhe comprado um limpa-neves eléctrico. Tinha ficado de procurar qual era o melhor, mas acabei por me esquecer. Não queríamos que continuasse a limpar com uma pá. Há um longo historial de AVC e de ataques cardíacos na nossa família.
Paul raspou uma mão-cheia de neve do capô de um carro e tentou fazer uma bola, mas não havia neve suficiente.
– Estou baralhada – disse Stella, parando para cheirar a base do pilar de uma vedação. – Se há muitos casos na família, como é que a culpa pode ser tua?
– O meu pai andava a fazer muitos esforços – respondeu Paul. – Se lhe tivéssemos oferecido o limpa -neves que eu deveria ter procurado, poderia ter descansado um pouco mais.
– Se, se, se…
– Se bem que o mais provável é que não o tivesse usado. Ele gostava de fazer aquilo.
– Ora aí está. Não podes passar a vida em suposições.
– Vocês, os cães… – suspirou Paul, virando à esquerda na Parsons.
– Onde é que vamos? – perguntou Stella.
– Preciso de andar um pouco – respondeu Paul.
Seguia em direcção ao cemitério.
– A tabuleta diz PROIBIDA A ENTRADA DE CÃES – lembrou-lhe Stella.
– Vamos ser ousados! – respondeu ele, revirando o colarinho para não deixar que a neve lhe caísse pelo pescoço.
[...]»

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