sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Crítica: "O Acompanhante"

«Entre nós, Jonathan Ames (n. 1964) é praticamente desconhecido. Autor de Bored to Death, popular série de televisão feita a partir de um dos seus contos, publicou romances, ensaios, uma antologia de memórias transexuais — Sexual Metamorphosis, 2005 — e até uma autobiografia gráfica sobre a dependência do álcool, ilustrada por Dean Haspie. Longe de reunir consenso, Ames tem sido elogiado e execrado com igual fervor desde que publicou I Pass Like Night (1989). Mesmo em Manhattan, esta mistura de Iggy Pop com P.G. Wodehouse soa desconcertante. Decerto não por acaso, define-se a si mesmo como "probably the gayest straight writer in America".


Podemos agora ler a tradução que André Chêdas fez de O Acompanhante, romance sobre as relações de Henry Harrison, dramaturgo falhado que vive de acompanhar mulheres da alta sociedade de Nova Iorque, e Louis Ives, docente de um colégio privado de Princeton que perde o emprego no dia em que é apanhado (na sala de professores) a vestir o sutiã de uma colega. Fica por esclarecer se a punição é devida ao arremedo de travestismo ou à erecção de Louis: "A protuberância conseguiu a proeza de confirmar a culpa dos meus actos, de forma mais contundente do que o próprio olhar, já de si claramente sexual..." Por momentos, julgamos estar a ler Augusten Burroughs. Com o fluir da intriga, a ilusão desfaz-se. Burroughs é literal, lá onde Ames prolonga a respiração da narrativa clássica.

O Acompanhante são duas vidas cruzadas: a de Henry, vergado ao peso das idiossincrasias; e a de Louis, em trânsito permanente entre os dois lados de um espelho. Concluído em 1996, o livro andou em bolandas durante dois anos, de editor em editor, tendo, ao cabo de vinte rejeições, sido publicado em 1998 pela Scribner. Shari Springer Berman adaptou-o ao cinema, com Kevin Kline (Henry) e Paul Dano (Louis) nos protagonistas. Tarefa inglória, na medida em que a estrutura semântica resiste à transposição de suporte. Se, por um lado, o cortejo de reflexões auto-depreciativas do narrador potencia o overacting, a trama dos envios (de Freud a Scott Fitzgerald, sem esquecer Bertie Wooster) apenas é perceptível na escrita precisa de Ames.

A história mistura elementos autobiográficos, deixando adivinhar o futuro interesse de Ames pela problemática transexual: "Ao ver-me vestido de mulher em toda a minha fealdade, tinha aprendido a apreciar e valorizar a beleza destas raparigas e o trabalho a que as obrigava. Só os homens poderiam ter uma presença de espírito tão obstinadamente direccionada para se quererem fazer passar por mulheres."

Por razões difíceis de explicar, não é comum associar Ames aos grandes nomes da tradição literária judaica, como Asimov, Bellow, Roth e outros. Porém, poucos livros como este descrevem com tanta subtileza o carácter escorregadio e as ambiguidades dessa tradição. Profundamente americano (no sentido em que identificamos Jerry Seinfeld como arquétipo), Ames calibra o discurso com secura e sabedoria: "Voltei à fotografia dele na bicicleta. Era perfeito. [...] Tentei olhar com profundidade para os belos olhos do rapaz da fotografia. A nossa idade não devia ser tão diferente quanto isso. Queria avisá-lo do que aí vinha e comecei a chorar. Chorava porque aquele rapaz não fazia ideia daquilo em que se ia tornar, que cinquenta anos mais tarde estaria a dormir num decrépito sofá no meio de um quarto pouco menos que imundo. Chorei pelo que acontecera à vida daquele jovem e chorei porque o velho em que esse jovem se tornou me tinha abandonado."

Ames é divertido sem ser pateta, irónico, mordaz, discretamente amargo, neurótico, culto mas não pedante. Parece contraditório, mas consegue ser tudo isto ao mesmo tempo. A dosagem homeopática ajuda. Como alguém disse, o entertainer nato.»

Eduardo Pitta, blogue Da Literatura, Janeiro de 2011

1 comentário:

HMBFF disse...

Será que neste 2011 a Contraponto vai presentear os seus leitores, e fãs de Ian Fleming, com mais traduções da colecção de James Bond? As edições lançadas o ano estão muito boas (as capas do Michael Gillette são fabulosas) e seria uma pena ficarem sozinhas na estante sem a companhia dos outros livros da colecção...