Nota: A partir de Junho, os livros da Contraponto passarão a adoptar o Novo Acordo Ortográfico.
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A ORIGEM DAS ESPÉCIES
Quando um jovem naturalista inicia o estudo de um grupo de organismos que desconhece por completo, começa por ficar demasiado perplexo para poder determinar quais as diferenças a considerar… pois nada sabe acerca da quantidade e do tipo de variação a que o grupo está sujeito…
POR VOLTA DE 1899, já sabíamos como lidar com a escuridão, mas não com o calor do Texas. Levantávamo-nos de madrugada, algumas horas antes do nascer do Sol, quando apenas se via uma mancha de índigo no céu oriental e o resto do horizonte era puro breu. Acendíamos os candeeiros a petróleo e transportávamo-los à nossa frente, no meio do negrume, como pequenos sóis minúsculos. Havia toda uma jornada de trabalho pela frente até ao meio -dia, altura em que o calor extremo nos obrigava a recolher ao nosso casarão, com as portadas todas fechadas, e a ficarmos deitados nos nossos quartos, às escuras, como vítimas transpiradas. O remédio habitual da mãe, de borrifar os lençóis com uma água-de-colónia refrescante, durava apenas um minuto. Às três da tarde, quando já estava na altura de nos levantarmos outra vez, a temperatura era ainda insuportável.
O calor era uma tragédia para todos os habitantes de Fentress, mas as mulheres sofriam muito mais, por causa dos espartilhos e dos saiotes. (Eu ainda era demasiado jovem para usar essa forma de tortura exclusivamente feminina.) Davam folga aos espartilhos e passavam o tempo todo a suspirar, amaldiçoando o calor e também os maridos por as terem arrastado até ao condado de Caldwell para plantarem algodão e hectares de nogueiras-pecãs. A mãe desistia temporariamente dos seus postiços, uma franja falsa de cabelo frisado e um enrodilhado de crina de cavalo, plataformas sobre as quais edificava diariamente uma montanha elaborada do seu próprio cabelo. Nesses dias, quando não tínhamos visitas, chegava mesmo a enfiar a cabeça debaixo da torneira que havia na cozinha, enquanto a Viola, a nossa cozinheira com um quarto de sangue negro, ia bombeando a água com a manivela. Não nos era permitido dar a menor gargalhada perante tão assombroso espetáculo. Enquanto a mãe ia perdendo gradualmente a sua dignidade por causa do calor, fomos descobrindo (a exemplo do pai) que mais valia afastarmo-nos do seu caminho.
O meu nome é Calpurnia Virginia Tate, mas, nesses tempos idos, toda a gente me tratava por Callie Vee. Nesse verão, tinha onze anos e era a única rapariga de sete irmãos. Conseguem imaginar pior do que isto? Estava encaixada entre três irmãos mais velhos – Harry, Sam Houston e Lamar – e três irmãos mais novos – Travis, Sul Ross e o benjamim, Jim Bowie, mais conhecido por J. B. Os mais pequenos ainda conseguiam dormir à hora do almoço, por vezes amontoados em cima uns dos outros como cachorros molhados exalando vapor. Os homens que chegavam dos campos, bem como o meu pai vindo do seu escritório na oficina de descaroçamento, também passavam pelas brasas, não sem antes se refrescarem com alguns baldes de água tépida retirada do poço, no alpendre que fazia de dormitório. Depois caíam nas suas camas de rede como que derrubados por um machado de guerra.
Sim, o calor era uma tragédia, mas também me dava liberdade. Enquanto o resto da família dormitava, esgueirava-me secretamente até às margens do rio San Marcos, onde podia gozar de um interlúdio diário sem escola, sem as pestes dos meus irmãos e sem a minha mãe por perto. Não tinha propriamente autorização para o fazer, mas também ninguém mo proibia. Pude prosseguir com estas escapadelas porque tinha um quarto só para mim no fundo do corredor, ao passo que os meus irmãos eram forçados a partilhar o deles. Caso contrário, teriam logo dado com a língua nos dentes. Tanto quanto me era dado a observar, essa era a única vantagem de ser uma rapariga no meio de tantos irmãos.
A nossa casa estava separada do rio por uma parcela de dois hectares em forma de lua crescente, coberta por uma vegetação densa e espontânea. Ter -me -ia sido tremendamente difícil atravessar toda a zona, não fosse o pequeno trilho aberto pelos habituais clientes do rio – cães, veados, irmãos – por entre as perigosas plantas que se erguiam à minha altura, plantas essas que largavam umas sementes espinhosas que ficavam agarradas ao cabelo e ao bibe sempre que me encolhia para tentar passar. Quando chegava ao rio, despia a roupa e ficava só em camisa; punha-me a flutuar de costas com os meus movimentos a provocarem ligeiras ondulações na corrente suave, apreciando a frescura da água a fluir à minha volta. Eu era uma nuvem de rio revirando ao de leve nos remoinhos. Olhava para cima, para as teias tecidas pelas lagartas na luxuriante cobertura de carvalhos vergados sobre o rio. Os insetos pareciam refletir a minha imagem, flutuando nos seus invólucros de gaze sob o pálido céu azul-turquesa.
Nesse verão, todos os homens menos o meu avô, Walter Tate, cortaram o cabelo à escovinha e raparam a barba e os bigodes farfalhudos. Pareciam tão nus como salamandras cegas durante os poucos dias que levámos a ultrapassar o choque de ver os seus queixos pálidos e frágeis. Estranhamente, o avô não parecia sofrer com o calor, mesmo com a sua barba branca tombando-lhe sobre o peito. Dizia que era por ser um homem de hábitos regulares e moderados, que nunca bebia uísque antes do almoço. O seu velho fraque malcheiroso já estava inexoravelmente fora de moda, mas nem pensar em desfazer-se dele. Apesar das constantes esfregadelas com benzina levadas a cabo pela nossa criada SanJuanna, o casaco nunca perdia o seu cheiro a mofo, bem como a sua cor estranha, algures entre o preto e o verde.
O avô vivia connosco debaixo do mesmo teto, mas movia-se como uma sombra. Desde há muito que delegara a gestão do negócio da família ao seu único filho, o meu pai, Alfred Tate, e passava os dias envolvido em «experiências» no seu «laboratório». O laboratório era composto por um velho barracão em tempos usado para acomodar os escravos. Quando não estava no laboratório, estava a apanhar espécimes ou embrenhado nos seus livros bafientos num canto escuro da biblioteca, sem que ninguém se atrevesse a perturbá-lo.»
A Evolução de Calpurnia Tate
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